sábado, 28 de abril de 2012
Aracy de Almeida relembra Noel Rosa
Século do progresso [Noel Rosa]
A noite estava estrelada
quando a roda se formou
A lua veio atrasa...da
e o samba começou
Um tiro a pouca distância no espaço, forte, ecoou
Mas ninguém deu importância e o samba continuou
Entretanto, ali bem perto, morria de um tiro certo
Um valente muito sé......rio
Professor dos desa......catos
Que ensinava aos pacatos o rumo do cemitério
Chegou alguém apressado naquele samba animado
Que cantando assim dizi......a:
"No século do progresso o revólver teve ingresso
pra acabar com a valentia"
Que porcaria de porco é esse aí?
Estamos em Belém
Novo, município de Porto Alegre, Estado do Rio Grande do Sul, no extremo sul do
Brasil, mais precisamente na latidude 30 graus, 2 minutos e 15 segundos Sul e
longitude 51 graus, 13 minutos e 13 segundos Oeste. Caminhamos neste momento numa
plantação de tomates e podemos ver a frente, em pé, um ser humano, no caso, um
japonês. Os japoneses se distinguem dos demais seres humanos pelo formato dos
olhos, por seus cabelos lisos e por seus nomes característicos. O japonês em
questão chama-se Toshiro. Os seres humanos são animais mamíferos, bípedes, que
se distinguem dos outros mamíferos, como a baleia, ou bípedes, como a galinha
principalmente por duas características: o telencéfalo altamente desenvolvido e
o polegar opositor. O telencéfalo altamente desenvolvido permite aos seres
humanos armazenar informações, relacioná-las, processá-las e entendê-las. O
polegar opositor permite aos seres humanos o movimento de pinça dos dedos o
que, por sua vez, permite a manipulação de precisão. O telencéfalo altamente
desenvolvido somado a capacidade de fazer o movimento de pinça com os dedos deu
ao ser humano a possibilidade de realizar um sem número de melhoramentos em seu
planeta, entre eles, plantar tomates. O tomate, ao contrário da baleia, da
galinha, dos japoneses e dos demais seres humanos, é um vegetal. Fruto do
tomateiro, o tomate passou a ser cultivado pelas suas qualidades alimentícias a
partir de 1800. O planeta Terra produz cerca de 28 bilhões de toneladas de
tomates por ano. O senhor Toshiro, apesar de trabalhar cerca de 12 horas por
dia, é responsável por uma parte muito pequena desta produção. A utilidade
principal do tomate é a alimentação dos seres humanos. O senhor Toshiro é um
japonês e, portanto, um ser humano. No entanto, o senhor Toshiro não planta os
tomates com o intuito de comê-los. Quase todos os tomates produzidos pelo
senhor Thoshiro são entregues a um supermercado em troca de dinheiro. O
dinheiro foi criado provavelmente por iniciativa de Giges, rei da Lídia, grande
reino da Asia Menor, no século VII Antes de Cristo. Cristo era um judeu. Os
judeus possuem o telencéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor. São,
portanto, seres humanos. Até a criação do dinheiro, o sistema econômico vigente
era o de troca direta. A dificuldade de se avaliar a quantidade de tomates equivalentes
a uma galinha e os problemas de uma troca direta de galinhas por baleias foram
os motivadores principais da criação do dinheiro. A partir do século III A.C.
qualquer ação ou objeto produzido pelos seres humanos, frutos da conjugação de
esforços do telencéfalo altamente desenvolvido com o polegar opositor, assim
como todas as coisas vivas ou não vivas sobre e sob a terra, tomates, galinhas
e baleias, podem ser trocadas por dinheiro. Para facilitar a troca de tomates
por dinheiro, os seres humanos criaram os supermercados. Dona Anete é um
bípede, mamífero, possui o telencéfalo altamente desenvolvido e o polegar
opositor. é, portanto, um ser humano. Não sabemos se ela é judia, mas temos
quase certeza que ela não é japonesa. Ela veio a este supermercado para, entre
outras coisas, trocar seu dinheiro por tomates. Dona Anete obteve seu dinheiro em
troca do trabalho que realiza. Ela utiliza seu telencéfalo altamente
desenvolvido e seu polegar opositor para trocar perfumes por dinheiro. Perfumes
são líquidos normalmente extraídos das flores que dão aos seres humanos um
cheiro mais agradável que o natural. Dona Anete não extrai o perfume das
flores. Ela troca, com uma fábrica, uma quantidade determinada de dinheiro por
perfumes. Feito isso, dona Anete caminha de casa em casa trocando os perfumes
por uma quantidade um pouco maior de dinheiro. A diferença entre estas duas
quantidades chama-se lucro. O lucro de Dona Anete é pequeno se comparado ao
lucro da fábrica, mas é o suficiente para ser trocado por 1 k de tomate e 2 k
de carne, no caso, de porco. O porco é um mamífero, como os seres humanos e as
baleias, porém quadrúpede. Serve de alimento aos japoneses e aos demais seres humanos,
com exceção dos judeus. Os alimentos que Dona Anete trocou pelo dinheiro que
trocou por perfumes extraídos das flores, serão totalmente consumidos por sua
família num período de sete dias. Um dia é o intervalo de tempo que o planeta
terra leva para girar completamente sobre o seu próprio eixo. Meio dia é a hora
do almoço. A família é a comunidade formada por um homem e uma mulher, unidos
por laço matrimonial, e pelos filhos nascidos deste casamento. Alguns tomates
que o senhor Toshiro trocou por dinheiro com o supermercado e que foram
trocados novamente pelo dinheiro que dona Anete obteve como lucro na troca dos
perfumes extraídos das flores foram transformados em molho para a carne de
porco. Um destes tomates, que segundo o julgamento altamente subjetivo de dona
Anete, não tinha condições de virar molho, foi colocado no lixo. Lixo é tudo
aquilo que é produzido pelos seres humanos, numa conjugação de esforços do
telencéfalo altamente desenvolvido com o polegar opositor, e que, segundo o
julgamento de um determinado ser humano, num momento determinado, não tem
condições de virar molho. Uma cidade como Porto Alegre, habitada por mais de um
milhão de seres humanos, produz cerca de 500 toneladas de lixo por dia. O lixo
atrai todos os tipos de germes e bactérias que, por sua vez, causam doenças. As
doenças prejudicam seriamente o bom funcionamento dos seres humanos. Além
disso, o lixo tem aspecto e aroma extremamente desagradáveis. Por tudo isso,
ele é levado na sua totalidade para um único lugar, bem longe, onde possa, livremente,
sujar, cheirar mal e atrair doenças. O lixo é levado para estes lugares por
caminhões. Os caminhões são veículos de carga providos de rodas. Quando da
realização deste documentário, em 1989, os caminhões eram dirigidos por seres
humanos. Em Porto Alegre, um dos lugares escolhido para que o lixo cheire mal e
atraia doenças foi a Ilha das Flores. Ilha é uma porção de terra cercada de
água por todos os lados. A água é uma substância inodora, insípida e incolor
formada, teoricamente, por duas moléculas de hidrogênio e uma molécula de oxigênio.
Flores são os órgãos de reprodução das plantas, geralmente odoríferas e de
cores vivas. De flores odoríferas são extraídos perfumes, como os que do Anete
trocou pelo dinheiro que trocou por tomates. Há poucas flores na Ilha das
Flores. Há, no entanto, muito lixo e, no meio dele, o tomate que dona Anete
julgou inadequado para o molho da carne de porco. Há também muitos porcos na
ilha. O tomate que dona Anete julgou inadequado para o porco que iria servir de
alimento para sua família pode vir a ser um excelente alimento para o porco e
sua família, no julgamento do porco. Cabe lembrar que dona Anete tem o
telencéfalo altamente desenvolvido enquanto o porco não tem nem mesmo um
polegar, que dirá opositor. O porco tem, no entanto, um dono. O dono do porco é
um ser humano, com telencéfalo altamente desenvolvido, polegar opositor e
dinheiro. O dono do porco trocou uma pequena parte do seu dinheiro por um
terreno na Ilha das Flores, tornando-se assim, dono do terreno. Terreno é uma
porção de terra que tem um dono e uma cerca. Este terreno, onde o lixo é
depositado, foi cercado para que os porcos não pudessem sair e para que outros
seres humanos não pudessem entrar, o que faria do dono do porco um ex-dono de
porco. Os empregados do dono do porco separam no lixo aquilo que é de origem
orgânica daquilo que não é de origem orgânica. De origem orgânica é tudo aquilo
que um dia esteve vivo, na forma animal ou vegetal. Tomates, galinhas, porcos,
flores e papel são de origem orgânica. O papel é um material produzido a partir
da celulose. São necessários 300 quilos de madeira para produzir 60 quilos de celulose.
A madeira é o material do qual são compostas as árvores. As árvores são seres
vivos. O papel é industrializado principalmente na forma de folhas, que servem
para escrever ou embrulhar. Este papel, por exemplo, foi utilizado para
elaboração de uma prova de História da Escola de Segundo Grau Nossa Senhora das
Dores e aplicado à aluna Ana Luiza Nunes, um ser humano. Uma prova de História
é um teste da capacidade do telencéfalo de um ser humano de recordar dados
referentes ao estudo da História, por exemplo: quem foi Mem de Sá? Quais eram
as capitanias hereditárias? A História é a narração metódica dos fatos ocorridos
na vida dos seres humanos. Recordar é viver. Os materiais de origem orgânica,
como os tomates e as provas de história, são dados aos porcos como alimento.
Durante este processo, algumas mulheres e crianças esperam no lado de fora da cerca
na Ilha das Flores. Aquilo que os porcos julgarem inadequados para a sua
alimentação, será utilizado na alimentação destas mulheres e crianças. Estas
mulheres e crianças são seres humanos, com telencéfalo altamente desenvolvido,
polegar opositor e nenhum dinheiro. Elas não têm dono e, o que é pior, são
muitas. Por serem muitas, elas são organizadas pelos empregados do dono do
porco em grupos de dez e têm a permissão de passar para o lado de dentro da
cerca. Do lado de dentro da cerca elas podem pegar para si todos os alimentos
que os empregados do dono do porco julgaram inadequados para o porco. Os
empregados do dono do porco estipularam que cada grupo de dez seres humanos tem
cinco minutos para permanecer do lado de dentro da cerca recolhendo materiais
de origem orgânica, como restos de galinha, tomates e provas de história. Cinco
minutos são 300 segundos. Desde 1958, o segundo foi definido como sendo o equivalente
9 bilhões, 192 milhões, 631 mil 770 mais ou menos 20 ciclos de radiação de um
átomo de césio quando não perturbado por campos exteriores. O césio é um
material não orgânico encontrado no lixo em Goiânia. O procedimento dos seres
humanos que recolhem materiais orgânicos no lado de dentro da cerca da Ilha das
Flores é semelhante apenas em objetivo ao procedimento de Dona Anete no
supermercado. No supermercado Dona Anete troca o dinheiro que trocou por
perfumes extraídos das flores pelo material orgânico; na Ilha das Flores os
seres humanos não têm dinheiro algum; no supermercado dona Anete tem o tempo
que julgar necessário para apanhar materiais orgânicos mas não há provas de
história disponíveis.
(A partir deste
momento a câmera se fixa exclusivamente nas mulheres e crianças no meio do
lixo)
O que coloca os
seres humanos da Ilha das Flores numa posição posterior aos porcos na
prioridade de escolha de materiais orgânicos é o fato de não terem dinheiro nem
dono. Os humanos se diferenciam dos outros animais pelo telencéfalo altamente desenvolvido,
pelo polegar opositor e por serem livres. Livre é o estado daquele que tem
liberdade. Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há
ninguém que explique e ninguém que não entenda.
Documentário Ilha das Flores
FIM (c) Jorge
Furtado, 1988-1989
Sensibilidade Racional
Creio
que a função de um diretor seja a de catalisar todos os elementos que envolvam
um trabalho, desde os estudos e conjecturas iniciais até uma provável
“finalização” da obra, para ser executada como tal. O diretor, conhecendo tanto
os materiais vivos [seus atores] quando os materiais conceituais a serem
trabalhados, desempenha a batalha de entender onde se posicionar frente a
tantas possibilidades e pontos de vista.
Nos
estudos e práticas do projeto Década de Ouro tenho a primeira experiência de
ser direcionada por Taianã Mello, assim como este é o primeiro trabalho da
atriz como diretora. O projeto começa com a ideia de ser uma manifestação
artística-política-social com caráter de intervenção em espaços públicos e suas
primeiras ações laboratoriais se deram sob a construção de composições. As
regras e diretrizes foram pautadas e organizadas pela diretora e seus atores
executavam, conforme solicitados, suas ações.
Durante
minhas criações senti falta de um diálogo maior com a diretora sobre o que
realmente queremos conduzir com essa proposta. Minha maior angustia frente ao
trabalho é entender de que maneira conseguirei encontrar uma espécie de
“sensibilidade racional” [acredito que o termo possa soar desvairado entre as
duas palavras] para poder distinguir e refletir sobre minhas ações dentro da
proposta. Além disso, após as composições executadas gostaria de mais tempo
para debater sobre o processo, e de um feedback mais verdadeiro sobre meu
trabalho, objetivando reorientar ou
estimular comportamentos futuros mais adequados.
Sobre o questionamento se a diretora responde ou
não às minhas questões dentro do trabalho, sinto que este caminho ainda está no
inicio por conta da operacionalização do mesmo [tempo para diálogo sobre o
material produzido, local adequado para execução dos trabalhos se relacionado
também ao tempo disponível, pausa na frequência dos encontros].
Em contraponto com as necessidades apresentadas
aqui, a diretora se mostra atenta aos materiais produzidos e nos dá abertura
para apresentação de ações e liberdade para criação dentro de tudo que é
proposto.
por Dani Ribeiro
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